01 setembro 2014

Paredes de Coura é, de facto, especial.

Festival Paredes de Coura
Paredes de Coura
20-24. agosto . 2014

Crónica para a Rádio Universidade de Coimbra.

Aqui não há espaço (literalmente) para tendas indiferenciadas com coisas “trazidas até nós” por uma marca qualquer, não há rodas gigantes no horizonte, não é preciso montar escorregas insufláveis (porque saltar directamente para o rio Taboão é muito mais divertido), não há glamour na zona de imprensa, nem na área VIP nem no recinto, porque os (verdadeiros) festivaleiros não gostam de revistas cor-de-rosa.

As actividades-extra às noites de concertos (que todos os anos vão sofrendo alterações ou afinações, funcionando como experiências diferentes e complementares) são o que se espera de um festival deste tipo. Cinema documental (sobre música, claro) ao ar livre e concertos que subiram à Vila, ao longo dos dias anteriores (entre outros, Moullinex, First Breath After Coma, Mirror People). Durante as tardes de festival, um palco de Jazz na Relva, para ressacas bem passadas. E quem queira apenas relaxar, tem também a “actividade-extra” de ficar à beira do rio a jogar cartas ou no campismo, em churrascadas bem fumadas.

Para quem toca, existe o ambiente especial e o cenário deslumbrante, tão marcante para quem faz tours extensas e as termina ali, muitas vezes tocando por sítios que são apenas entediantemente iguais aos da noite anterior. Para quem vê, há a possibilidade de alternar (em coisa de 30 segundos e poucos passos) entre dois palcos em que as coincidências de horários não são de grande monta, podendo assim apreciar aquilo que, supostamente leva alguém a um festival de música (e, ainda mais, a Paredes de Coura), os concertos.

Desta vez, quatro noites no palco principal. Na recepção ao campista (ou re-recepção, porque muitos chegam ao recinto vários dias antes) quatro nomes bem distintos. Capicua trouxe consigo M7, D-One e Dário Cannatá que a acompanharam na palavra, no som e na imagem. Num pouco habitual momento de hip-hop no historial deste festival, o concerto estabeleceu bem o propósito de boas-vindas, com a nortenha Ana Matos a divertir-se e a emocionar-se enquanto divertia e emocionava, principalmente nos trechos apenas de palavra que, arriscadamente mas de forma conseguida, encheram o auditório. Depois, uma das boas surpresas desta edição, os americanos Cage The Elephant que, condensadores de muitas influências foram progressivamente elevando a fasquia. Apesar de o seu registo e a sua apresentação dependerem de alguns lugares-comuns do rock ‘n’ roll, a verdade é que o resultado final foi genuíno e competente e, por isso, cativante. Ainda mais porque se tratava de um grupo na acepção da palavra, em que cada elemento, na sua diferença (musical, visual e de postura), contribui com a individualidade para o colectivo. Seguiu-se talvez o maior flop de todo o festival (mesmo as boas edições como esta foi, têm direito a falhar…): Janelle Monáe. Estava tudo no sítio, as roupas brancas e o cenário (e instrumentos) a condizer, os penteados, as dançarinas, a afinação… no entanto, a empatia com o público, com o local, com os espíritos da música, simplesmente não funcionou. Não sendo terrível, porque suor e qualidade técnica houve, ficou a pairar em grande parte do público a sensação de que aquele concerto era apenas “mais um” e não ficaria na memória. A noite, naquele palco, fechou com Public Service Broadcasting, um duo inglês que concilia uma aura vintage, repescando gravações e imagens da Inglaterra dos anos 40, 50 e 60, com as sonoridades post-rock e krautrock. Os samples e sons pré-gravados substituem na íntegra todas as vocalizações, dando a ideia de uma certa distância da banda. No início estranhou-se um pouco, mas no fim a “coolness geek” dos PSB foi uma boa descoberta (tal como eles dizem, “ensinam lições do passado, através da música do futuro”). A sua música mais cerebral talvez tenha sido uma aposta arriscada para o final de noite, mas é destes riscos que Paredes de Coura também é feito. A festa terminou no palco secundário que, no dia 20, foi apenas cenário para os autralianos Cut Copy em formato DJset, com as sonoridades assentes numa matriz electro-house, mas longe de cativarem (tal como fariam, dois dias depois, em concerto) os mais resistentes da primeira noite do festival.

O dia 21 inaugurou o recinto em todo o seu esplendor, começando logo, à tarde, com o concerto descontraído de Jazz na Relva dos portugueses Hitchpop. Ao final da tarde começava o saltitar entre dois palcos: de um lado, o blues-rock musculado do portugês Fast Eddie Nelson (alter-ego de Nelson Oliveira), que conseguiu uma óptima abertura do Palco Vodafone, com o público presente já em bom número a reagir como manda a lei do blues mais endiabrado, pontuada com uma excelente versão do clássico beatleano “Come Together”; do outro, o post-rock melodioso dos espanhóis Oso Leone, com a contenção e a tensão latentes em algumas canções do seu álbum de estreia homónimo a deixarem algumas pistas interessantes a desbravar no futuro, onde a segunda bateria em palco poderá ser mais contundente); e, voltando atrás, a pop electrónica dos autralianos Panama, que soa, apesar de tudo, mais interessante nas remisturas que outros nomes fizeram das suas canções (caso do planante “It’s Not Over”) do que na recriação dos seus próprios temas em palco. Mas um dos bons momentos da noite estava reservado para o sénior Seasick Steve. Este americano de 72 anos conseguiu aquilo que, por vezes, apenas quem tem experiência de vida (e de palco) consegue: a empatia forte e imediata com o público. As letras dos seus blues, acompanhadas por um baterista, proporcionaram uma actuação de excelente storytelling onde, além da barba, da jardineira e das promessas de amor às jovens do recinto, se destacaram as guitarras feitas à mão com materiais que muitos ferros-velhos recusariam. Com um auditório de alma já cheia, adivinhava-se que a noite só podia ser em grande. Sem tempo para descansos, Thurston Moore, em quarteto que incluía Steve Shelley (sim, o baterista dos Sonic Youth), apresentou a ficha de ADN que, sem margem para falhas, identifica o legado sonoro deixado por aquela banda nova-iorquina desde os inícios dos anos 80. Apresentando já um pouco do seu futuro disco «The Best Day», o concerto equilibrou muito bem os momentos noise, as cadências rítmicas e os embalos hipnóticos que o caracterizaram ao serviço da sua agora extinta banda. Depois disto, a primeira habituação ao concerto de Mac DeMarco não foi fácil. O som parecia um pouco baixo e pouco pujante (ou seria mesmo apenas o contraste?) e os músicos pareciam com dificuldade em soltar-se. Mas, tal como no futebol, não há duas partes iguais e, a segunda metade foi em grande crescendo, apoiado no novo «Salad Days» (uma quase-perfeição pop dentro do imaginário deste americano) e ainda na subida ao palco de uma menina que ajudou Mac a fazer baixar o espírito de Jah (via Bob Marley), à qual se seguiram muitos outros que entoaram a apoteótica “Together”. Voltando ao palco secundário, tempo para um excelente concerto de Thee Oh Sees. O projecto de John Dwyer era bastante aguardado e não desiludiu, soando durante quase uma hora a uma mistura entre Clinic e Dead Kennedys (o que, da nossa parte, são dois enormes elogios), com uma secção rítmica robusta e uma guitarra e voz carregadas de distorção, reverb e delay, numa mistura que deixou os ouvidos a zumbir e o corpo a latejar, no bom sentido. Depois de algumas canções dos Chvrches, com a sua pop electrónica demasiado redonda e pouco vigorosa, surgiu o pretexto ideal para uma pausa na zona de restauração, mesmo que para trás ficassem alguns seguidores bastante satisfeitos com a estreia destes escoceses em Portugal. Os “verdadeiros” escoceses viriam logo de seguida: Paul, Bob, Nick e Alex, ou seja, Franz Ferdinand. Mesmo os mais desconfiados, alegando o menor vigor discográfico deste quarteto e o facto de aquele poder ser um déjà vu do concerto que, naquele mesmo palco, acontecera em 2009, tiveram de se render à festa que poucos como os FF conseguem fazer. Uma formação que se manteve constante e que já se conhece de olhos fechados, músicas saltitantes, refrões facilmente cantáveis e uma mistura de várias linguagens pop e rock das últimas décadas, tornaram este concerto noutra aposta ganha da organização. Nota ainda à dedicatória especial, pela voz do amigo Alex Kapranos, à quase-conimbricense Tracy Vandal, presente no recinto. Já depois das duas da manhã, foi a vez de White Haus, o mais recente projecto de João Vieira (X-Wife, DJ Kitten) incendiar a assistência com electro-rock de raízes no leftfield disco da Nova Iorque dos anos 70 (com o expoente máximo em “How I Feel”, o single que apresentou o seu «White Haus EP» lançado em 2013), ao qual se seguiu o DJ francês Ivan Smagghe, com o seu electro-house, mas sem a pujança sonora do seu projecto Black Strobe.

Após uma noite quase perfeita, a sexta-feira trouxe alguns pontos altos mas também um certo número de decepções. No palco principal a tarde acabou bem, com o stoner rock dos barcelenses Killimanjaro a colocar em brasa a parte inferior do auditório e a convencer a parte superior que, mesmo sentada, batia o pé, meneava o tronco e aplaudia. Seguiram-se os Linda Martini, caso assinalável de culto entre nós, ao longo de uma década. Num concerto sem surpresas, em que a banda foi, na perfeição, aquilo a que habituou os seus acérrimos seguidores que compactavam o espaço à frente da régie, faltou que a chama passasse na totalidade para a metade superior da audiência para que a aclamação fosse geral. Os concertos ainda com luz solar e num espaço tão aberto, ainda que bonitos, perdem quase sempre a capacidade para criar a sensação de comunhão geral, que foi só o que ficou a faltar a este concerto. Antes, e noutro palco, os americanos Buke and Gase eram um nome que se fazia acompanhar de alguma curiosidade pelos instrumentos manufacturados pelos próprios (uma espécie de guitarra e uma espécie de baixo), acrescentando em palco um bombo, uma pandeireta de pé e as suas duas vozes. Apesar da boa capacidade de comunicação e do evidente gosto em estar ali, a verdade é que a sua música dissonante e experimental não encontrou naquele palco (e no público) grande eco aclamatório. Ainda na tenda, já de noite, tocaram os londrinos Yuck, apresentando o seu indie-rock carregado de referências shoegaze e dos anos 90, que contou ainda com uma versão de “Temptation”, dos New Order. Pelas reacções imediatas durante e entre as músicas, percebeu-se que têm público fiel no nosso país, assim como Conor Oberst, principalmente por ser mentor dos Bright Eyes. Este, no palco principal teve como banda de suporte os Dawes, que ao início da tarde tinham actuado, sem grande impacto, no secundário (tendo como cartão de visita o seu último disco «Stories Don’t End», lançado em 2013, onde o imaginário do indie-rock acústico norte-americano está bem patente). Conor, vagueando no espectro do folk-rock de tradição americana e do alternative-country, tendo feito um concerto competente, com momentos de forte intensidade sonora mas também outros, mais íntimos, onde a fragilidade da voz e da guitarra conquistaram o público. Num registo diametralmente oposto, o punk-hardcore dos Perfect Pussy mostrou-se extremamente barulhento, não podia ser de outra maneira, claro, mas num tal encadeamento que se foi tornando cansativo e algo maçador, apesar de, verdade seja dita, o quarteto encabeçado pela poderosa Meredith Graves ter oferecido aos fãs desta banda da Captured Tracks o que eles queriam. Habituados a dar tudo em palco estão também os Black Lips que, no palco principal, continuaram o alinhamento do cartaz, num concerto que, mesmo interessante e, a espaços, entusiasmante, ficou aquém do esperado, talvez pelo facto de a música e a atitude deste quarteto americano (que pontualmente se fez acompanhar ainda por um 5º elemento no saxofone) funcionar melhor em espaços menos arejados e onde se sinta o suor a passar do palco para a plateia e vice-versa. No auditório natural foi aos australianos Cut Copy que coube fechar o palco. Munidos de uma combinação quase irrepreensível entre pop e dance music, mostraram-se bastante enérgicos e contagiaram, desde o início, o cada vez mais público que quase lotava o recinto. Ainda nessa noite, mas no palco-tenda, o rock shoegaze dos Cheatahs, banda sediada em Londres, editada pela Wichita Recordings e que tem a sua matriz musical no lo-fi dos anos 90 (onde cabem os nomes dos Dinosaur Jr. e Pavement, só para citar algumas referências mais imediatas), prendeu muita gente e manteve o ambiente composto para o encerrar da noite por parte do DJset do inglês Mike Greene aka Fort Romeau, assente num house instrumental algo monocórdico que não deixou grandes marcas dançáveis. 

Se tinha de terminar, que terminasse em grande. E foi assim mesmo que, no dia 23 de Agosto, se assistiu a uma histórica lotação total do perímetro do festival. E desde cedo que o recinto se mostrou bem cheio, talvez também beneficiando do facto de ser um sábado. Uma das actuais coqueluches da pop electrónica nacional, Sequin (o projecto de Ana Miró), arrastou público conhecedor e deveras apreciador das sonoridades veraneantes, sedutoras e algo “Naive” da autora de «Penelope», que abriram a tarde/noite de concertos no palco secundário onde, no ano passado, tinham estado com estrondoso êxito, os Sensible Soccers. Desta vez “promovidos” ao palco principal, apoiados no declarado mérito da crítica e dos seguidores ao seu LP «8», cumpriram e encantaram os apreciadores do seu shoegaze electrónico e contemplativo, apesar de menos festivos do que na edição anterior, onde a comunhão com o público nocturno de uma tenda a abarrotar criou um momento dificilmente repetível. Estas seriam as duas propostas portuguesas da noite que continuou, no palco mais pequeno, com os The Dodos. Depois de se estrearem em Portugal (com direito a passagem por Coimbra), em 2008, foram criando uma base de fiéis seguidores que efusivamente os receberam, ainda ao final da tarde. A visitar os seus diversos registos e em formato de duo (o que a banda sempre foi, com pontuais adições), ofereceram um dos melhores concertos do festival, pela energia efervescente da bateria de Meric Long e as guitarras dedilhadas e reverberantes de Logan Kroeber, juntamente com a sua voz aveludada. Findo o concerto, foi tempo de rapidamente arranjar um lugar para ver Kurt Vile, de regresso a Paredes de Coura, com os Violators. Com o aclamado disco «Wakin On A Pretty Daze» como cartão-de-visita, mas contando já com uma discografia que lhe foi granjeando muita atenção, o concerto do americano era bastante aguardado e, talvez por isso, tenha desiludido em certa medida. O concerto foi competente mas, diga-se, pouco mais do que isso. As boas canções estavam presentes, mas a atitude demasiado tímida e contida (do líder) da banda não se adaptou à celebração que o público estava preparado para fazer. Em contraste, imediatamente a seguir, Hamilton Leithauser conquistou com alguma facilidade o público do palco secundário, possivelmente ajudado pelo lastro que os seus The Walkmen deixaram em Portugal nos últimos anos. Contudo, a descontração do americano (que esteve por vezes sozinho em palco apenas com a sua guitarra) talvez tenha sido de mais pois, juntamente com a sua banda distribuíram alguns “pregos” (incluindo numa versão de Leonard Cohen) que podem ter sido também originados pelo cansaço do final de tour europeia. Falando em “pregos”, os The Growlers talvez tenham ganho o prémio de slackers do festival. Essa atitude nem teria nada de grave, até porque as canções rock eram um bom mote, o problema é quando esta se transforma em umbiguismo e condescendência para com o público. Foi o que transpareceu, em exagero, do vocalista Brooks Nielsen, enquanto a sua banda ia tocando, de forma mais ou menos indiferente. E, nestes casos, nem truques como “fazer a onda” ou chamar pessoas para o palco salvam a face. Foi um, dos felizmente muito raros, momentos fracos do festival que logo se recompôs com a actuação memorável dos suecos Goat. Apoiados num imaginário sonoro e visual que remete para o tribalismo africano, conjugaram-no na dose certa com riffs de guitarra e linhas de baixo de faceta rock, ao que somaram duas vocalistas mascaradas que, quase sempre em simultâneo, entoavam cânticos às vezes estridentes, às vezes hipnóticos. Por fim, espaço para dois concertos seguidos no palco principal, ambos extremamente aguardados e que encerraram mais que dignamente o auditório natural, nesta edição de 2014. Primeiro os Beirut, liderados pelo mentor Zach Condon, trouxeram a simbiose da folk da América do Norte, da França e dos Balcãs, com uma brilhante secção de metais, juntamente com bateria e um indispensável acordeão que, em conjunto, ora faziam dançar ora sossegar. Revisitando toda a sua discografia, tiveram um merecidamente épico regresso ao nosso país onde terão ganho mais interessados na sua música, além dos muitos já existentes. Por último, o inglês James Blake, jovem com uma tão inusitada quão sublime voz de crooner da soul que, juntamente com o uso delicado mas intenso da electrónica, arrebatou quase todo o público que estava, diga-se, já à partida rendido. E porque talvez já previsse que não se quereria ir embora tão cedo, ainda se juntou depois, aos companheiros da editora 1-800-Dinosaur que toma também o nome de colectivo de DJs (juntamente com o produtor inglês Airhead, Dan Foat e o seu baterista Mr. Assister) e que conduziu, até alta madrugada, os resistentes, numa viagem sonora onde o garage londrino se misturou alegremente com algum dubstep narcótico, sempre com toadas house pelo meio.

Resumidamente podemos dizer que esta foi uma edição equilibrada, onde a qualidade e a irreverência estiveram presentes, onde as apostas seguras conviveram bem com nomes menos conhecidos, onde uma vez mais se combinou na perfeição música, pessoas e natureza. Foi, de facto, (mais) “uma semana de felicidade”, em Paredes de Coura.

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